
Uso óculos, sabe? Leio bastante... Na escola já me chamaram de um monte de coisa. Fundo de garrafa, ceguinha. Mas o que mais me chamavam era "quatro-ôlho".
Eu não ligava. Tinha que usar, e dava sempre um ar de seriedade e intelectualidade. E eu não via, e não vejo, problema algum nisso. Considero até uma contribuição ao meu charme, e modéstia, claro!
Os anos foram passando, as experiências se acumulando, e meu óculos sempre comigo. Mudando de cor, ás vezes era vermelho, marrom, rosa, branco. Ás vezes de hastes finas, de formas arredondadas, quadradas. Meu óculos era meu parceiro de mudança. Óculos novo sempre foi sinal, para as pessoas sobre mim, que algo havia mudado. Eu tinha mudado.
Depois de um tempo, deixei de dar tanta importância ao meu óculos. Cheguei a pensar, até, que eles só estavam ali para machucar meu nariz e atrás de minhas orelhas. E minha vida seguiu, e meu óculos se tornou, apenas, mais um acessório. Quando, ontem, ao tirá-los para dormir apaguei a luz. Lembrei que não havia pego um livro que ando lendo. Acendi a luz, peguei o livro na minha mesa de estudos, e voltei para cama. Abri o livro e ao tentar ler, percebi que as letras estavam como se embaçadas. Apertei os olhos na ilusão que se a visão ficasse mais estreita as palavras seriam obrigadas a se organizar. Então notei que algo me fazia falta para executar minha leitura: meu par de óculos. Aos colocá-los, pareceu-me até mágica! Lia perfeitamente, e a luz da lâmpada já não me incomodava tanto. Despertei para um pensamento que nunca dantes me havia ocorrido. Meus "quatro-ôlho" me faziam ver além e daí via demais, ou foram eles que me impediram de ver tantas coisas todo esse tempo?
É estranho falar assim, mas a minha associação foi inevitável. Tentamos a todo custo nos prevenir de tudo aquilo que nos consuma tempo e nos cause sofrimento, mas sempre nos pegamos em desordem por uma palavra não dita, um olhar reprovador, uma fala mal expressa, um adeus, ou um para sempre. Meus "quatro-ôlho" me fizeram ver um buraco, uma pedra em falso, uma rosa, um bom livro, um sorriso, um abraço. Mas não me avisaram que aquele buraco era fundo e cheio de lodo, que a pedra eu não poderia pisar, que na rosa há espinhos cruéis, no bom livro, para ser bom, nem sempre o final é feliz e colorido, que por trás do sorriso podia se esconder um mal desejo e que em um abraço podia conter todo o desespero de uma falsa amizade. Foi então que percebi que aquela pequena situação me fizera pensar longe e grande. Que meu óculos me ensinara muito. Sorri e resolvi. Vou mudar de óculos. Um satisfeito, talvez.
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